A Antropologia Teológica do Concílio Vaticano II

Cônego Lauro Sérgio Versiani Barbosa.

O Concílio Vaticano II não tratou especificamente da Antropologia Teológica em seus documentos conclusivos, mas na primeira parte da Constituição Pastoral Gaudium et Spes encontramos a sua contribuição mais substanciosa para a reflexão antropológica. A Gaudium et Spes, ao conjugar elementos doutrinais e pastorais em sua reflexão sobre “A Igreja no Mundo Atual”, volta a sua atenção para a criatura humana e acaba por produzir verdadeira síntese antropológica. O método adotado pela Gaudium et Spes é preferencialmente, mas não exclusivamente, indutivo: a realidade humana acolhe a revelação de Deus. Assumindo a postura de diálogo com o mundo contemporâneo, a Constituição Pastoral contempla o ser humano concreto a quem a Igreja quer servir, como fica evidente no início do seu belo Proêmio: As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco em seu coração (GS 1). A questão antropológica ocupa lugar fundamental na exposição da Gaudium et Speso homem será o fulcro de toda a nossa exposição: o homem uno e integral: corpo e alma, coração e consciência, inteligência e vontade (GS 3). É claro que o ser humano é contemplado à luz da revelação cristã.

Assim, dos números 4 – 10, a Gaudium et Spes trata, como introdução, da condição do homem no mundo de hoje, apontando os desafios atuais e os questionamentos fundamentais levantados pelo ser humano, concluindo com a visão cristocêntrica da história humana: a chave, o centro e o fim de toda a história humana se encontram no seu Senhor e Mestre…subjacentes a todas as transformações, há muitas coisas que não mudam, cujo último fundamento é Cristo, o mesmo ontem, hoje e para sempre (cf. Hb 13,8). Quer, portanto, o Concílio, à luz de Cristo, imagem de Deus invisível e primogênito de todas as criaturas (cf. Cl 1,15), dirigir-se a todos, para iluminar o mistério do homem e cooperar na solução das principais questões do nosso tempo (GS 10). Para Cristo tudo converge e nele está o fundamento de tudo o que existe. Em Cristo as interrogações humanas mais profundas encontram a sua resposta final.

Segue-se a primeira parte da Gaudium et Spes, que tem por título A Igreja e a Vocação do Homem. O primeiro capítulo sobre A Dignidade da Pessoa Humana oferece uma síntese antropológica que tem o seu ponto alto no número 22, a maior e mais original contribuição teológica do Concílio Vaticano II para a reflexão antropológica. O n. 12 trata da criação do ser humano à imagem de Deus conforme lemos no Antigo Testamento. O n. 13 trata do pecado como abuso da liberdade que trouxe divisão e enfraquecimento do ser humano, impedindo a sua realização. O n. 14 trata da constituição una do ser humano em corpo e alma. Os números 15 e 16 tratam da dignidade da inteligência e da consciência moral. O n. 17 trata do dom da liberdade humana. O n. 18 aborda o mistério da morte iluminado pela ressurreição de Cristo. Os números 19 a 21 apontam para a sublime vocação humana de diálogo com Deus, abordando o desafio do ateísmo para a Igreja.

O número 22 da Gaudium et Spes é de altíssimo nível teológico e retoma o que fora aludido no número 10. A perspectiva cristológica é a única capaz de esclarecer o mistério do ser humano: Na realidade, só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente o mistério do homem. Adão, o primeiro homem, era efetivamente figura daquele futuro (cf. Rm 5,14 e cf. Tertuliano. De carnis resurr. 6), isto é, de Cristo Senhor. Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime. Não é por isso de admirar que as verdades acima ditas tenham nele a sua fonte e nele atinjam a plenitude (GS 22). Ou seja, a questão antropológica só se resolve em chave interpretativa cristológica. Estamos diante do princípio fundamental da antropologia do Concílio Vaticano II, ponto de partida para uma visão teológica unitária, coerente, integral e sistemática do ser humano à luz da fé cristã. Tudo o que foi dito anteriormente sobre o ser humano só pode ser plenamente compreendido à luz de Cristo. É a partir do Filho de Deus que se encarnou que se pode compreender o que o ser humano é chamado a ser. Dizer que o ser humano foi criado à imagem de Deus é ainda vago e abstrato. À luz do Novo Testamento se pode dizer que Adão era apenas figura daquele que veio pela encarnação (cf. Rm 5,14). O Vaticano II retoma pensamento patrístico um tanto esquecido. Cita, em nota de pé de página do n. 22 da Gaudium et Spes, Tertuliano, logo após a referência ao texto de Paulo aos Romanos. Tertuliano afirma que naquele que era modelado do barro vinha pensado Cristo, o homem definitivo. Poderia ter sido citado também Santo Irineu que em sua antropologia concebe o homem plasmado do barro da terra pelas mãos de Deus como reproduzindo já a imagem de Cristo que se encarnaria. Assim, só sabemos quem é o ser humano por Cristo: Adão se explica por Cristo e não o contrário, Cristo por Adão. Cristo nos revela o amor do Pai e revela o ser humano a si mesmo. Desde o início da criação só temos uma vocação: sermos filhos de Deus por adoção no seu Filho Unigênito por natureza. O Vaticano II retoma a mais antiga tradição cristã dos Padres da Igreja, obscurecida pela distinção excessiva entre ordem natural e sobrenatural no relacionamento entre a humanidade e Deus.

Continua o n. 22 da Gaudium et Spes“Imagem do Deus invisível” (Cl 1,15) (cf. 2 Cor 4,4), ele é o homem perfeito, que restitui aos filhos de Adão a semelhança divina, deformada desde o primeiro pecado. Já que, nele, a natureza humana foi assumida, e não destruída, por isso mesmo, também em nós foi elevada a sublime dignidade. Porque pela sua encarnação, ele, o Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cada homem. Trabalhou com mãos humanas, agiu com uma vontade humana, amou com um coração humano. Nascido da Virgem Maria, tornou-se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, exceto no pecado (GS 22). A citação de Cristo como imagem de Deus tirada da Carta de Paulo aos Colossenses já aparecera no n. 10 e reaparece no n. 22 da GS. O tema do homem criado à imagem de Deus do Antigo Testamento e que apareceu no n. 12 da GS se torna concreto em Cristo, verdadeira imagem do Deus invisível. Assim, o ser humano é, na verdade, imago imaginis Dei, pois Cristo é a imagem de Deus, como ensina ainda Paulo na 2 Cor 4,4, citada em nota de pé de página do n. 22 da GS, e também na Carta aos Romanos 8,29. Cristo é o homem perfeito, que assumiu a natureza humana plenamente e a elevou a sublime dignidade, ensina a Gaudium et Spes 22. Atenção! Não se trata da afirmação cristológica do Concílio de Calcedônia (451) de Cristo perfeito homem quanto à sua natureza, mas do homem perfeito, isto é, completo, acabado, pleno, o protótipo do humano! A natureza humana não foi absorvida pela divindade, mas assumida e elevada à sua máxima dignidade. Essa mesma idéia de Cristo, o homem perfeito, será retomada no desenvolvimento da Gaudium et Spes em outros números. No terceiro capítulo, sobre a Atividade Humana no Mundo, no n. 38 lemos: O Verbo de Deus, pelo qual todas as coisas foram feitas, fazendo-se homem e vivendo na terra dos homens (cf. Jo1,3.14) , entrou como homem perfeito na história do mundo, assumindo-a e recapitulando-a (cf. Ef1,10) (GS 38). No quarto capítulo sobre O Papel da Igreja no Mundo Contemporâneo se lê: Todo aquele que segue Cristo, o homem perfeito, torna-se mais homem (GS 41); e ainda no mesmo capítulo: Com efeito, o próprio Verbo de Deus, por quem tudo foi feito, fez-se homem, para, homem perfeito, a todos salvar e tudo recapitular (GS 45). Ou seja, em Cristo nós temos a humanidade realizada segundo o desígnio único, original e definitivo do Criador e segui-lo é aperfeiçoar-se e crescer em humanidade. E prossegue o parágrafo 2 do n. 22 da Gaudium et Spes que estamos analisando, dizendo que, pela sua encarnação, o Filho de Deus se uniu de certa forma a todo homem, conforme ensina a Tradição da Igreja sobre a humanidade assumida pelo Filho, mas o Concílio acrescenta ao plano ontológico em que se situavam os Padres da Igreja o plano existencial da vida humana concreta como observaram os teólogos J. Ratzinger e L. Ladaria: Trabalhou com mãos humanas, pensou com uma inteligência humana, agiu com uma vontade humana, amou com um coração humano (GS 22). Ou seja, Cristo assemelhou-se a nós em tudo, exceto no pecado e do qual veio nos libertar. O parágrafo seguinte do n. 22 trata exatamente da entrega solidária do Cristo até a morte pelos nossos pecados, de sua obra de reconciliação que confere sentido e santidade à vida e à morte. É bom lembrar que o Verbo encarnado é o Cristo morto e ressuscitado. A relação Cristo-Adão é dialética. Adão é figura de Cristo. Mas Cristo, último (definitivo) Adão, vem a um mundo marcado pelo pecado, portanto a nossa configuração a Cristo nos associa ao mistério pascal de Jesus Cristo.

O quarto parágrafo do n. 22 da Gaudium et Spes torna explícita a necessidade da configuração do cristão à imagem do Filho e da associação ao mistério pascal do Cristo na força do Espírito Santo para a realização do desígnio original de Deus sobre o ser humano, fundamentando-se amplamente na teologia paulina. O parágrafo seguinte acrescenta que isso vale não só para os cristãos, mas para todos os homens de boa vontade: Com efeito, já que por todos morreu Cristo e que a vocação última de todos os homens é realmente uma só, a saber, a divina, devemos acreditar que o Espírito Santo dá a todos a possibilidade de se associarem a este mistério pascal por um modo só de Deus conhecido. Tal é, e tão grande, o mistério do homem, que a revelação cristã manifesta aos que crêem. E assim, por Cristo e em Cristo, esclarece-se o enigma da dor e da morte, o qual, fora do seu Evangelho, nos esmaga. Cristo ressuscitou, destruindo a morte com a própria morte, e deu-nos a vida, para que, tornados filhos no Filho, exclamemos no Espírito: Abba, Pai! (GS 22). Ficam evidenciados o significado salvífico universal de Jesus Cristo, a missão do Espírito Santo, a dimensão trinitária da salvação cristã e a dimensão comunitária da salvação que será mais desenvolvida na seqüência da Gaudium et Spes. Nota-se, porém, que o acento sobre o significado salvífico universal de Jesus Cristo é mais escatológico que protológico. A protologia é mais implícita. Talvez o Vaticano II tenha preferido evitar entrar aqui em disputas entre escolas teológicas com posições diversas (escola escotista e escola tomista).

Em outros documentos do Concílio Vaticano II encontram-se referências claras à relação fundamental entre Cristo e o ser humano, embora sem um tratamento sistemático. No Decreto Ad Gentes sobre A Atividade Missionária da Igreja acha-se a seguinte passagem: A atividade missionária tem íntima conexão também com a própria natureza humana e suas aspirações. Com efeito, ao dar a conhecer Cristo, a Igreja revela, por isso mesmo, aos homens a genuína verdade da sua condição e da sua integral vocação, pois Cristo é o princípio e o modelo da humanidade renovada e imbuída de fraterno amor, sinceridade e espírito de paz, à qual todos aspiram (AD 8). Na Declaração Nostra Aetate sobre As Relações da Igreja com as Religiões Não-Cristãs afirma-se: Nós não podemos invocar Deus, Pai de todos os homens, se nos recusamos a comportar-nos como irmãos para com alguns homens criados à imagem de Deus. A relação do homem para com Deus Pai, e a relação do homem para com os outros homens seus irmãos, encontram-se tão ligadas entre si que a Sagrada Escritura diz: “Quem não ama, não conhece a Deus” (1 Jo 4,8) (NA 5). O contexto fala de Cristo como fundamento da fraternidade universal, o que fica explícito nos números 92 e 93 da Gaudium et Spes. Na Constituição Dogmática Lumen Gentium sobre a Igreja são várias as passagens que abordam a relação fundamental entre Cristo e a humanidade em termos de vocação e realização de toda a humanidade, destacando a centralidade de Jesus Cristo como luz do mundo: LG 1; 2; 3; 6; 7; 9; 11; 13; 31; 32; 40; 48; 49; 50; 51; 52. Cito apenas o final da LG 3: Todos os homens são chamados a esta união com Cristo, que é a luz do mundo, do qual procedemos, pelo qual vivemos e para o qual tendemos. Na mesma direção podemos citar a Constituição Dogmática Dei Verbum sobre a Revelação Divina em seu importante n. 2 que aponta para Cristo como mediador e plenitude de toda a revelação. A Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia nos números 2, 6 e 48 aponta para a inserção no mistério do Cristo celebrada na liturgia como vocação de todos. Na mesma linha da convergência de tudo para Cristo podemos citar: o já mencionado Decreto Ad Gentes 1, 3, 6 e 7; o Decreto Presbyterorum Ordinis sobre O Ministério e a Vida dos Presbíteros n. 22; o Decreto Apostolicam Actuositatem sobre o Apostolado dos Leigos números 17 e 18; o Decreto Unitatis Redintegratio sobre o Ecumenismo números 2 e 3.

Embora todas essas citações não sejam exaustivas, não há dúvida de que o Concílio Vaticano II mostra que há um só desígnio salvífico de Deus sobre o ser humano e que une criação e redenção. O ser humano do ponto de vista teológico, concreto e existencial, não pode ser definido sem uma referência clara a Jesus Cristo. Há uma consistência própria e autonomia da realidade criatural, mas Cristo é a determinação última da pessoa humana. O ser humano é deiforme e cristoforme, chamado à configuração a Jesus. Na graça, somos chamados a sermos filhos no Filho. Como diria Karl Rahner, o ser humano é o que surge quando Deus quer fazer-se criatura, quando Deus quer expressar-se no outro. O ser humano é, pois, ontologicamente, um possível irmão de Jesus. A plenitude da graça não é uma salvação extrínseca, mas com toda a novidade trazida por Cristo, temos a realização do desígnio originário de Deus: em Cristo somos escolhidos. Cristo é o modelo do ser humano desde o início e pelo Espírito Santo leva a pessoa humana à realização do desígnio final de Deus. Mas Cristo representa uma novidade radical e gratuita na história. Novidade gnosiológica enquanto realização e superação da esperança de Israel. Novidade enquanto superação do pecado pela redenção que permite passar do primeiro ao segundo Adão. Novidade enquanto possibilidade de realização do ser humano pelo dom do Espírito. Não se trata simplesmente do Logos eterno, mas de Jesus, o Logos encarnado, de Jesus morto e ressuscitado, da vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo na força do Espírito Santo doado para a glória de Deus Pai: Quando, porém, chegou a plenitude do tempo, enviou Deus o seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a Lei, para resgatar os que estavam sob a Lei, a fim de que recebêssemos a adoção filial. E porque sois filhos, enviou Deus aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: Abba, Pai! (Gl 4,4-6).

Referências Bibliográficas

ALBERIGO, G., História dos Concílios Ecumênicos, São Paulo, Paulus, 1995.

DOCUMENTOS DO CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II, São Paulo, Paulus, 20115.

LADARIA, L. F., Introdução à Antropologia Teológica, São Paulo, Loyola, 1998.

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MIRANDA, M. F., A Salvação de Jesus Cristo, São Paulo, Loyola, 2004.

RAHNER, K., Curso Fundamental da Fé, São Paulo, Paulinas, 1989.

RUIZ DE LA PEÑA, J. L., Criação, Graça, Salvação, São Paulo, Loyola, 1998.

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