No último artigo, sobre a morte, falava que, embora seja uma realidade aparentemente cruel, a morte pode também tornar mais ampla e plena a forma de presença. Citava como exemplo a pessoa de Jesus Cristo, que morreu e continua mais vivo do que nunca. Mais ainda: se não tivesse passado pela morte, não conseguiria alcançar tudo o que alcançou. Seria impossível chegar a tantas pessoas, em tantos recantos da terra e ao longo de tantos séculos.
Isso nos ajuda a perceber a importância e a necessidade da ausência, da falta, da morte. De fato, a presença material é limitada pelo tempo e pelo espaço, enquanto a presença simbólica torna-se muito mais abrangente. O concreto é aquilo que se vê, se toca. Está mais no objeto. O simbólico é o que eu quero ver e sentir. Está mais no sujeito, na pessoa. Por isso mesmo, pode ir muito além. A religião trabalha muito com o simbólico, justamente porque vai além daquilo que se vê e se toca. E, muitas vezes, é mais forte que o concreto.
Alguns explicam assim o momento em que Jesus, antes de morrer na cruz, olha para sua mãe e, apontando para João, diz: “Eis aí teu filho”. Em vez de perder um filho, ela ganha a humanidade, representada pelo “discípulo amado”. Jesus já havia afirmado antes: “Quem se apega à sua vida, perde-a; quem a perde vai encontrá-la” (Mt 16,25).
Sobre essa ausência que se faz presença, Freud nos deixou um mito interessante. Conta ele que, numa aldeia antiga, havia um pai muito severo, que representava a hierarquia, a lei, a disciplina. Embora seus filhos fossem desunidos, para se livrar daquele pai severo acabaram se unindo para matá-lo. Com a morte do pai, desapareceu também a autoridade, a lei. A vida entre eles se tornou insuportável, pois todos eram iguais e ninguém se respeitava. Até o incesto se tornou uma prática comum. Quando os irmãos percebem que não dá para viver sem um pai, constroem um totem, uma figura que represente o pai. E é aquele totem que irá garantir a ordem, a disciplina naquele clã. Freud afirma que as religiões nascem daí. “Deus nada mais é que um pai glorificado”. Segundo ele, todas as religiões surgem do sentimento de culpa diante do mal (pecado original) e do desejo de agradar o pai, a divindade, com orações, cantos, sacrifícios, para evitar o castigo e colocar em ordem as relações. É a força do pai simbólico.
Voltando à paixão de Cristo na cruz, muita gente não entende como Jesus poderia experimentar a ausência do Pai: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?!” (Mt 27,46). Mas a psicanálise explica que o pai verdadeiro é justamente aquele que falta. Pois é a falta que faz a pessoa se assumir. O excesso de presença infantiliza. Podemos dizer que aquele foi um dos momentos em que o Pai demonstrou maior amor por seu Filho. É como se lhe dissesse: “Eu sempre estive ao seu lado. Quando as coisas apertam, você corre para o meu colo. Sempre fui sua garantia e proteção. Agora é com você. Assuma a sua missão. Mostre o seu amor, a sua coragem. Mostre que você cresceu!”
Então, ao se sentir sozinho, abandonado por todos, inclusive pelo Pai, Jesus é como que obrigado a assumir a sua maturidade, sua entrega livre e total. Torna-se Ele mesmo, assume sua identidade. Mostra que precisa desse “Grande Outro”, mas que não pode depender sempre e em tudo dele.
Há algum tempo escrevi sobre “a falta que faz falta”. E é isso mesmo. Precisamos experimentar a falta para crescer e amadurecer. A falta de amor, de carinho, de presença, machuca e faz mal. Mas o excesso também. “Ser amado em excesso faz tão mal quanto não ser”, diz o Pe. Fábio em sua música ‘Marcas do Eterno’. A falta faz caminhar, como afirma a psicóloga Rosely Sayão: “O que nos faz caminhar é sempre a falta de algo. Quem tem tudo, todo amor do mundo, não tem o que procurar”.
Muitos acham que Deus é verdadeiramente Pai e Mãe quando nos atende em tudo, na hora e da forma como pedimos. Como crianças que consideram bons os pais que satisfazem todos os seus desejos. Mas Deus, que é realmente o nosso Grande Outro, o Pai verdadeiro, sabe que muitas vezes precisamos mais da falta, da ausência, do corte. E é justamente aí, quando dói, que conseguimos descobrir a beleza da vida e a importância da presença.