Homilia proferida na missa da noite do Natal do Senhor – 2011
“O povo que caminhava nas trevas viu uma grande luz. Sobre aqueles que habitavam a terra da sombra uma luz resplandeceu.” (Is 9,1) Com estas palavras do profeta Isaías fomos introduzidos na liturgia da Palavra desta celebração em que, à luz do mistério Pascal de Cristo, recordamos a entrada de Deus no tempo e espaço humanos, o mistério da encarnação, a revelação da graça de Deus para a salvação da humanidade. Trata-se de uma noite em que, por meio da simplicidade e singeleza, contemplamos o amor e a misericórdia de Deus expressos em um menino envolto em faixas, deitado em uma manjedoura, protegido por seus pais, animais domésticos e alguns pastores.
Ao escrever este texto, o profeta Isaías, provavelmente se referia ao povo que vivia em algumas regiões judaicas invadidas e dominadas pelo Rei assírio Tiglat-Pileser III, por volta do século VIII a. C. Eram regiões pobres, desprovidas de maiores cuidados dos reis de Israel, ficavam à margem e, por isso, fáceis de serem dominadas e oprimidas. Entre estas regiões encontrava-se a Galiléia, terra que abrigaria séculos depois a família de Maria, a escolhida do Senhor. Ser dominado por povos pagãos era motivo de tristeza e sofrimento para o povo de Deus. Era sinal de maldição e de castigo por causa de suas infidelidades e pecados. As trevas significam, nesse contexto, infelicidade e, principalmente, opressão.
Nessa mesma situação dos povos do tempo do profeta Isaías, encontravam-se os pastores do tempo de Jesus. Gente simples, pobre, desqualificada, malvista em Israel porque vivia à parte da comunidade praticante. O trabalho que os pastores exerciam, o cuidado das ovelhas, exigia deles vigilância constante. Era um trabalho que os fazia viver sozinhos, isolados. Além disso, as escassas vegetações forçava-os, muitas vezes, a ocupar terra alheia para alimentar seus rebanhos, para dar vida às ovelhas. Viver nas trevas, neste contexto, era viver na marginalização, na exclusão, no esquecimento.
O tempo do profeta e dos pastores passou, mas a realidade vivida por eles não, pois apesar da distância cronológica ainda há povos, pessoas, grupos que vivem nas trevas, na escuridão. São pessoas invisíveis para um sistema que os rejeita, que os renega e não faz nada por eles. São pessoas que vivem na sombra da morte porque a vida lhes é roubada, injustamente.
Quem são essas pessoas? Que grupos são esses? Onde eles estão?
Nossa oitava assembleia paroquial, realizada em setembro desse ano, inspirada pelo Espírito Santo, com ousadia e profecia, enumerou diversas pessoas e grupos que insistimos não enxergar ou fingir que não vemos: crianças e adolescentes abandonados, vítimas da violência, estudantes que não são acolhidos pelas comunidades, jovens e adolescentes explorados sexualmente, jovens que ficam sentados nas calçadas, estudantes com dificuldades no colégio, idosos esquecidos, idosos explorados economicamente, pessoas portadoras de necessidades especiais, pessoas da zona rural, pessoas atingidas e ameaçadas pela exploração dos recursos naturais, pessoas presas nos condomínios, pessoas afastadas da igreja, vítimas de preconceito racial e social, pessoas de outras denominações religiosas, vítimas da violência no trânsito, desempregados, subempregados, analfabetos, trabalhadores e trabalhadoras que têm seus direitos negados, profissionais com capacitação não reconhecida pela sociedade, encarcerados, albergados, egressos do sistema prisional, mulheres vítimas de violência, mulheres donas de casa, mães adolescentes, mães sozinhas, famílias encarceradas, casais em segunda união, pessoas separadas, pessoas homossexuais, pessoas alcoólatras, dependentes químicos. Quantos ainda, entre nós, vivem na escuridão!
Entretanto meus irmãos, minhas irmãs, o tempo das trevas, da sombra da morte se esgotou. O jugo que oprimia o povo – a carga sobre os ombros, o orgulho dos fiscais – foi abatido pelo Senhor como na jornada de Madiã. O povo que andava nas trevas viu uma grande luz, a glória do Senhor se manifestou, trazendo salvação para os seres humanos.
Uma grande alegria foi anunciada: Nasceu hoje, na cidade de Davi, o Salvador, que é Cristo o Senhor. Ele é o conselheiro admirável, o Deus forte, pai dos tempos futuros, príncipe da Paz. Ele é um presente para toda a humanidade, para cada um de nós! Essa boa notícia é para todos os tempos, para todos os povos e chega também a nós, através dessa celebração litúrgica da qual participamos. Chega também a todas aquelas pessoas excluídas, mal amadas, rejeitadas ou esquecidas!
Mas a boa notícia não vem só. Ela vem acompanhada de um sinal: um recém-nascido envolvido em faixas e deitado numa manjedoura. Um simples menino, um frágil menino, um pobre menino. Esse menino é o motivo pelo qual o texto do profeta Isaías deixa de ser promessa e torna-se realidade. O Hoje a que se refere o anjo é, verdadeiramente, o nosso Hoje, o aqui e agora.
Contudo, minhas irmãs e irmãos, como pode um recém-nascido ser tudo isso que se anuncia: o Salvador, o Libertador, o Messias, o Príncipe da Paz? Como uma criança que acaba de deixar o ventre de sua mãe pode derrotar os poderosos deste mundo? Com um ser tão frágil e pequenino pode acabar com a maldade, a injustiça e a opressão? Por mais que seja um ser de Luz como fará para iluminar quem vive nas trevas?
A resposta é simples: pelo amor. Esse menino é sacramento do amor, boa notícia do amor, lugar do amor. Esse menino é sinal de vida e salvação porque refaz em nós a imagem humana que havíamos perdido. Ao assumir a humanidade, nos faz participantes de sua divindade. Esse menino traz à tona, do mais profundo do nosso ser, tudo aquilo que temos de bom e divino e que, às vezes, esquecemos possuir.
Seus braços abertos estão como que a pedir a você e a mim: dá-me o seu amor! Dá-me a sua paz! Dá-me a sua alegria! Dá-me sua ousadia! Dá-me a sua ternura! Dá-me o seu encantamento pela vida! E assim, aos poucos, deixamos aflorar em nós, os sentimentos de luz que as trevas e a escuridão do preconceito, da discriminação, da ganância, da injustiça, do ódio tentaram ofuscar. A luz contemplada pelo povo que andava nas trevas é sim a luz do menino, a luz de Deus, mas que estava dentro de nós desde o momento em que fomos criados. Diz um teólogo que quando nós nascemos Deus diz assim: “eu te amo, você nunca mais morrerá para mim!”
Ao contemplarmos esse menino envolto em faixas recordamos essas palavras ditas pelo Pai e que agora estão estampadas na feição do seu Filho encarnado. Elas têm o poder de nos revigorar, reencantar e fazer perceber que o amor do Pai, expresso no Filho, é maior que nossos pecados, nossas faltas, fraquezas, misérias, incongruências, contradições. Sim, meus irmãos e irmãs, nesta noite somos resgatados pelo amor de Deus presente em nós. É a força do amor que derruba os poderosos, é a força do amor que desfaz o jugo que nos oprime, é a força do amor que nos aquece, é a força do amor que supera toda e qualquer divisão. É a força do amor que vence a tirania dos dominadores, é a força do amor que nos reúne, é a força do amor que nos faz feliz!
Ao vivenciarmos este celebração do amor, desejo que cada um, cada uma, vivencie o amor, experimente o amor, seja o amor para todas as pessoas que pensam estar nas trevas e no erro. Aos sairmos daqui, levemos a cada pessoa que encontrarmos um pouquinho desse amor que experimentamos nessa liturgia e, assim, todos possam contemplar, onde quer que estejam, a verdadeira Luz, a verdadeira Paz, o verdadeiro Amor. Assim seja. Amém.